16 junho 2010

Tempos difíceis, patriotismo e regionalismo

Recentemente o país oficial comemorou o 10 de Junho, dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Dezenas de portugueses mais ou menos ilustres foram condecorados diante das mais altas individualidades do Estado e de centenas de convidados. Houve desfile militar ao qual assistiram, além das ditas individualidades, umas largas centenas de portugueses. Um número indeterminável de portugueses seguiu as cerimónias pela televisão, certamente mais do que se se tivesse dado o caso de o dia estar bom para esplanadas, passeios e praia. Se não fossem os assobios ao Primeiro-ministro e o discurso do Presidente ninguém diria que estávamos em crise.

Mas estamos. Vivemos a crise mais profunda desde 25 de Abril de 1974 e de isso se fez eco o Presidente no seu discurso. Da floresta de lugares comuns inevitáveis em discursos deste tipo sobressaíram três ideias força: a extrema gravidade da situação, a necessidade de sacrifícios para superar as dificuldades e a confiança na capacidade dos portugueses para, como no passado, ultrapassarem as adversidades. Destas ideias força fez o Presidente decorrer uma série de apelos e evocações, o "tocar a reunir" natural em qualquer comunidade ameaçada: apelos à coesão nacional e ao patriotismo dos portugueses, evocações repetidas e variadas do nosso passado comum.

Gostava de poder concordar com o que disse o Presidente. Não posso. E não posso não tanto pelo que foi dito como pelo que ficou por dizer. Num discurso de 1845 palavras o Presidente teve a bondade de dedicar 42, introduzidas de modo desgarrado, lá para o fim, aos problemas daquilo a que chamou "coesão territorial". Não resisto a transcrever: "A coesão nacional exige também coesão territorial. As assimetrias de desenvolvimento e a desertificação e o envelhecimento que ameaçam algumas zonas do interior não podem ser uma fatalidade. O desenvolvimento harmonioso de todas as regiões deve ser um desígnio de unidade nacional." E mais não disse, assunto despachado.
Reconheça-se um mérito ao Presidente Cavaco Silva: o da coerência com o Primeiro-ministro Cavaco Silva. Foi ele que em 1985 iniciou (antes disso não havia meios) a implementação da opção estratégica que algumas vezes vi referida como "Lisboa, grande capital europeia" e que desde então vem sendo seguida por todos os governos, independentemente da sua cor partidária. Basicamente trata-se da ideia peregrina de que, depois do fim do Império, a única maneira de preservar a independência e a coesão nacionais é fazer de Lisboa "um gigante num corpo de anão", como gostava de dizer, citando Oliveira Martins, um dos teóricos desta estratégia, o falecido Comandante Virgílio de Carvalho. Segundo esta tese, os portugueses do Minho ao Algarve sentiriam um renovado orgulho pátrio ao reverem-se numa capital rica, próspera e dinâmica. Lisboa seria o imane em torno do qual Portugal se manteria unido.

Esta agenda escondida, nunca abertamente enunciada, nunca publicamente debatida e nunca democraticamente ratificada, mas partilhada pelas elites dirigentes dos dois maiores partidos nacionais, explica toda uma série de opções e decisões de outro modo incompreensíveis: o volte face de Cavaco Silva e as hesitações de António Guterres em matéria de regionalização, as privatizações privilegiando os grupos económicos de Lisboa em relação aos do Norte, as grandes obras de regime em Lisboa, a concentração do investimento publico na zona de Lisboa, o desvio de verbas dos fundos comunitários para Lisboa, a instalação em Lisboa das duas agencias europeias com sede em Portugal, o novo aeroporto de Lisboa, a prioridade dada ao TGV Lisboa - Madrid sobre o Lisboa - Porto - Vigo (sem dúvida menos importante para a coesão nacional…), a aplicação selectiva do princípio do utilizador/pagador no caso das SCUTS. Seria possível detalhar mais, dar outros exemplos. Mas o que importa é sublinhar que esta opção estratégica foi implementada com um rigor e uma coerência raras em Portugal. E que deu resultados: o PIB da região de Lisboa rapidamente ultrapassou a média europeia; o resto de Portugal (salvo a Madeira) cresceu pouco ou regrediu; o PIB nacional quase estagnou nos últimos 10 anos; Portugal atrasou-se em relação aos outros países da UE.

Agora chegou a crise. Onde os outros países europeus se constiparam, a Grécia e Portugal - talvez os dois países mais centralizados da EU - contraíram pneumonias. As políticas acima mencionadas, seguidas nestes últimos 25 anos, são em grande parte a causa desta situação. Como muitos especialistas têm vindo a apontar, os sucessivos governos, ao favorecerem uma economia baseada em grandes empresas fornecedoras de serviços a um mercado mais ou menos cativo (sedeadas em Lisboa) ao mesmo tempo que abandonavam à sua sorte as empresas produtoras de bens transaccionáveis (espalhadas por todo o território nacional), não só colocaram Portugal no olho do ciclone como nos privaram do principal instrumento para reagir à crise: o aumento sensível das exportações. A rentabilidade duvidosa ou mesmo negativa de muitos dos investimentos públicos feitos e o peso excessivo do Estado vêm agravar ainda mais a situação.

Perante isto o que é ser patriota? Pedir sacrifícios aos portugueses deixando antever mais do mesmo uma vez vencida a crise? Ou colocar em causa o modelo vigente propondo uma reforma do Estado e novas opções estratégicas para Portugal? Os apelos do Presidente à coesão nacional soarão inevitávelmente a falso às mulheres grávidas de Elvas a quem o Estado diz para irem ter os filhos a Badajoz; aos portugueses de Valença que devem ir a Tuy para receber cuidados médicos; aos automobilistas do litoral norte que são os unicos a quem se aplica o principio do utilizador/pagador. Vitima de um autismo inquietante, a elite politica portuguesa parece não perceber os danos que 25 anos de centralismo feroz causaram na nossa sociedade.

Nem sempre o patriotismo está onde se espera. A história, que o Presidente tão frequentemente evocou no seu discurso, mostra-nos que, em momentos de crise da nossa Nação, muitas vezes os verdadeiros patriotas foram aqueles que não aceitaram o unanimismo que as circunstancias pareciam impor e tiveram a coragem de dizer “o rei vai nu”. O modelo que designei por “Lisboa, grande capital europeia” falhou redondamente. Já tinha falhado ao não assegurar o desenvolvimento harmonioso de todas as regiões. Já tinha falhado ao nem sequer assegurar uma melhor qualidade de vida à maior parte de aqueles que, à priori, poderiam dele beneficiar, os habitantes da região de Lisboa. A presente crise vaio cruelmente revelar que nem sequer é viável. Dizer alto e bom som que este modelo é em grande parte responsável pelas proporções que a crise mundial atingiu em Portugal e que há que mudar de vida através de uma regionalização que acabe definitivamente com o atavismo centralista do Estado português é quanto a mim uma das mais pertinentes formas de ser patriota no Portugal de hoje.


Jorge de Freitas Monteiro

4 comentários:

  1. Apenas um ligeiro comentário a um belo texto: a terra galega a que se refere não se chama 'Tuy' mas sim 'Tui'. O nome que referiu, castelhano, é hoje em dia considerado ilegal.

    Um abraço ao movimento/partido

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  2. Bom texto (valia a pena dar mais referências do autor).

    Há apenas uma ressalva. Provavelmente o continuo crescimento da região de Lisboa nos últimos 25 anos não se deveu exclusivamente à concentração territorial dos investimentos e despesas pública da administração central e empresas monopolistas do sector não transaccionável, mas sim também devido ao endividamento/alavancagem acima da média do sector privado dos residentes do distrito de Lisboa. O distrito de Lisboa, Santarem e Setubal em final de 2009 representavam 51% da dívida privada dos residentes. Fonte Banco de Portugal.

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  3. Isto significa que num cenário de desalavancagem da economia como iremos viver nos próximos anos, a região de Lisboa regredirá em termos de PIB mais do que a média.

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  4. A conclusão a tirar deste óptimo texto, que se poderá considerar implicitamente nele contida mas que deverá ser bem explicitada, é que o exposto explica e justifica o nascimento do MPPN e que o seu sucesso é indispensável para um efectivo progresso do país.
    Acrescento duas pequenas observações. A primeira é que os fautores do sistema "Lisboa grande capital" pretendiam adicionalmente que ele permitisse criar um contra-ponto a Madrid e a Barcelona, e assim impedir a influência espanhola em Portugal. O que está a ocorrer mostra a justeza desta ideia...! A segunda, é que quando Jorge Monteiro diz, e bem, que é necessário implementar-se uma regionalização, há que frizar muito bem que ela não pode ser aquela farsa que andam a (não) prometer-nos há tantos anos, e que não é mais do que novo exemplo do clássico "há que mudar para que tudo fique cada vez mais na mesma".

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