28 maio 2010

A interdição de partidos regionais

Vieram a lume notícias sobre a criação de um partido a Norte, regional ou regionalista. Na primeira hipótese, tratar-se-ia de um partido de índole regional e nortenha. Na segunda, de um partido nacional para defender a regionalização. As notícias incluíam interrogações sobre a existência de obstáculos constitucionais ao reconhecimento pelo Tribunal Constitucional (TC) de partidos regionais ou regionalistas, resultantes do Artigo 51, parágrafo 4 da Constituição Portuguesa (CRP), que reza: "Não podem constituir-se partidos que, pela sua designação ou pelos seus objectivos programáticos tenham índole ou âmbito regional".
É de lembrar o contexto em que a interdição dos partidos regionais foi inserida. Vivia-se 1975. Em Lisboa e a sul do Tejo o PREC atingia o máximo. No resto do país lutava-se contra a deriva da Revolução de Abril. Se no Norte isso se traduzia no reforço dos partidos democráticos, nos Açores e na Madeira a resistência criava movimentos independentistas que aguardavam a tomada do poder em Lisboa pelas forças à esquerda do PS, para proclamarem a independência.
Os constituintes decidiram prevenir o surgimento de movimentos independentistas não permitindo a formação de partidos políticos regionais e daí o Art. 51 (4) CRP. A ligação desta norma ao ambiente do PREC é confirmada pelo facto de, no texto original da CRP, não ter encontrado acolhimento no artigo relativo aos partidos políticos (Art. 47), mas, de forma envergonhada, nas disposições finais e transitórias, escondida no penúltimo artigo da CRP (Art. 331).
Passaram 35 anos. Em parte nenhuma existem movimentos independentistas. Somos uma democracia onde se supõe serem respeitados os direitos, liberdades e garantias reconhecidos pela CRP, pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) e pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). Agora, cidadãos entendem criar um partido regional ou regionalista. Coloca-se a questão de saber se a CRP os impede.
O direito de formar partidos políticos é um direito fundamental reconhecido pela CRP bem como pelas mencionadas Cartas de Direitos, a que Portugal aderiu e a cujo respeito é obrigado.
Como todos os direitos, estes não são ilimitados ou sequer ilimitáveis. Todos os países da União Europeia proíbem a existência de partidos racistas, fascistas ou que façam a apologia da violência. Trata-se de uma limitação à liberdade de formar partidos políticos justificada, proporcional e a aplicar com prudência. Como princípio geral de direito, toda a derrogação ou restrição às liberdades fundamentais deve ser justificada, limitada ao mínimo e deve, na sua aplicação, ser interpretada restritivamente.
Ora a norma do art. 51(4) CRP será justificada e proporcional? Será que um partido, por ter um carácter regional ou regionalista, deve receber o mesmo tratamento, ou seja, a interdição, que os partidos racistas, fascistas ou que fazem a apologia da violência? É difícil uma resposta afirmativa. Nada há em comum entre este tipo de organizações e um partido constituído por cidadãos que consideram necessário organizarem-se partidariamente para defenderem a regionalização ou o que consideram ser os interesses da sua região enquanto parte do todo nacional. O contrário é tanto mais ridículo quanto a regionalização continua a ser uma obrigação para o poder político sempre adiada mas nunca retirada da CRP.
Provavelmente consciente do absurdo da situação, o TC tem vindo a fazer uma interpretação restritiva do Art. 51 (4). Nisso foi ajudado pelos dois partidos regionalistas que pediram e obtiveram o reconhecimento (o PDA e o PPR) na medida em não se apresentaram como partidos regionais mas como nacionais. Ao reconhecê-los, o TC estabeleceu (cf. Acórdão n° 256/95 do TC, relativo ao reconhecimento do PPR) uma distinção entre partidos regionais (em relação aos quais nunca teve a oportunidade de se pronunciar) e partidos regionalistas. Esta jurisprudência, salvo reviravolta inesperada, responde a uma parte da questão: os partidos regionalistas são já admitidos no ordenamento constitucional.
Resta a questão dos partidos regionais. Admitamos que os cidadãos recolhem as assinaturas, preenchem os requisitos e vêem o TC recusar o partido com base no art. 51(4). Admitamos que acreditam no Estado de Direito e no dever do Estado Português de respeitar as obrigações internacionais que subscreveu. Admitamos que decidem usar as vias de recurso e atacar essa hipotética decisão do TC diante do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) por violação pelo Estado Português da CDFUE (cf. Art. 12) e da CEDH (cf. Art. 11 e 18).
Assinalemos que, se poderão existir obstáculos quanto à admissibilidade de tal recurso diante do TJCE, é claro que tal não é o caso no TEDH. O desfecho seria desastroso para Portugal. Como explicar a situação, aos parceiros da UE, onde é permitida a criação de partidos regionais e onde partidos regionais fazem parte das coligações governamentais ou das maiorias parlamentares? Qual seria a situação do Estado Português, condenado por violação de um dos direitos basilares, o dos cidadãos intervirem através da criação de partidos?
Na realidade esta norma é um exemplo daquilo que alguns constitucionalistas denominam de norma constitucional inconstitucional : estando integrada na CRP é formalmente constitucional ; violando de modo injustificado e ilimitado outra norma constitucional de nível superior, como são as relativas aos direitos liberdades e garantias, é substancial e materialmente inconstitucional.
Impõe-se que na próxima revisão constitucional esta «lei celerada» seja suprimida.
E se no futuro próximo, um partido apresentando-se como regional, respeitando o quadro constitucional, nomeadamente o carácter uno da soberania portuguesa, pedir o seu reconhecimento diante do TC? Duas vias se abririam. Uma, fazer uma leitura literal do artigo 51 (4), ignorar o conflito insanável entre esta disposição e as normas constitucionais relativas aos direitos, liberdades e garantias, a CDFUE e a CEDH e recusar o novo partido. Outra, levar em consideração a origem histórica da norma, sublinhar o seu carácter excepcional e derrogatório, proceder a uma interpretação restritiva e correctiva do conteúdo e reconhecer o que seria o primeiro partido regional português, justificando a decisão pelo enquadramento jurídico de que o artigo 51 (4) deve ser objecto.

Jorge de Freitas Monteiro
Jurista

4 comentários:

  1. «Assinalemos que, se poderão existir obstáculos quanto à admissibilidade de tal recurso diante do TJCE, é claro que tal não é o caso no TEDH. O desfecho seria desastroso para Portugal. Como explicar a situação, aos parceiros da UE, onde é permitida a criação de partidos regionais e onde partidos regionais fazem parte das coligações governamentais ou das maiorias parlamentares? Qual seria a situação do Estado Português, condenado por violação de um dos direitos basilares, o dos cidadãos intervirem através da criação de partidos?»

    Levou-se demasiado tempo a dissecar estas contradições legais, agora, já não há mais desculpas para hesitar. Avancemos!

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  2. Finalmente um artigo em que a problemática do nº4 do art. 51 da CRP é tratado de forma clara mas profissional por um jurista esclarecido. Parece-me que ficam definidas as alternativas que se põem ao Movimento N quanto à legalização do futuro partido. Agora é questão de se ponderar os respectivos méritos e escolher a melhor solução.

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  3. Rui Farinas subscrevo as suas palavras, este artigo coloca toda a problemática de uma forma transparente e organizada!
    Obrigado ao Jorge Monteiro!

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